Não
reclamo. Apenas constato. Tem ficado cada vez mais difícil a gente se
reconciliar com os erros cometidos. O motivo é simples. A vida privada
acabou. O acontecimento particular passa a pertencer a todos. A internet
é um recurso para que isso aconteça. Os poucos minutos noticiados não
cairão no esquecimento. Há um modo de fazê-los perdurar. Quem não viu
poderá ver. Repetidas vezes. É só procurar o caminho, digitar uma
palavra para a busca.
Tudo
tem sido assim. A socialização da notícia é um fato novo,
interessantíssimo. Possibilita a informação aos que não estavam diante
da TV no momento em que foi exibida.
A
internet nos oferece uma porta que nos devolve ao passado. Fico
fascinado com a possibilidade de rever as aberturas dos programas do meu
tempo de infância. As imagens que permaneciam vivas no inconsciente
reencontram a realidade das cores, movimentos e dos sons.
Mas
o que fazer quando a imagem disponível refere-se ao momento trágico da
vida de uma pessoa? Indigência exposta, ferida que foi cavada pelos
dedos pontiagudos da fragilidade humana? Ainda é cedo para dizer. Este
novo tempo ainda balbucia suas primeiras palavras.
O
certo é que a imagem eterniza o erro, o deslize. Ficará para
posteridade. Estará resguardada, assim como o museu resguarda documentos
que nos recordam a história do mundo.
Coisas da contemporaneidade. Os recursos tecnológicos nos permitem eternizar belezas e feiuras.
Uma
fala sobre o erro. Eles nascem de nossa condição humana. Somos
falíveis. É estatuto que não podemos negar. Somos insuficientes, como
tão bem sugeriu o filósofo francês Blaise Pascal. O bem que conhecemos
nem sempre atinge nossas ações. Todo o mundo erra. Uns mais, outros
menos. Admitir os erros é questão de maturidade. Esperamos que todos o
façam. É nobre assumir a verdade, esclarecer os fatos. Mais que isso. É
necessário assumir as consequências jurídicas e morais dos erros
cometidos. Não se trata de sugerir acobertamento nem de solicitar que
afrouxem as regras. Quero apenas refletir sobre uma das inadequações que
a vida moderna estabeleceu para a condição humana.
Tenho
aprendido que o direito de colocar uma pedra sobre o erro faz parte de
toda experiência de reconciliação pessoal. Virar a página, recomeçar,
esquecer o peso do deslize é fundamental para que a pessoa possa ser
capaz de reassumir a vida depois da queda. É como ajeitar uma peça que
ficou sem encaixe. O prosseguimento requer adequação dos desajustes. E
isso requer esquecer. Depois de pagar pelo erro cometido a pessoa
deveria ter o direito de perder o peso da culpa. O arrependimento
edifica, mas a culpa destrói.
Mas
como perder o malefício do erro se a imagem perpetua no tempo o que na
alma não queremos mais trazer? Nasce o impasse. O homem hoje perdoado
ainda permanecerá aprisionado à imagem. A vida virtual não liberta a
real, mas a coloca na perspectiva de um julgamento eterno. A morbidez do
momento não se esvai da imagem. Será recordada toda vez que alguém se
sentir no direito de retirar a pedra da sepultura. E assim o passado não
passa, mas permanece digitalizado, pronto para reacender a dor moral
que a imagem recorda.
Estamos
na era dos pecados públicos. Acusadores e defensores se digladiam nos
inúmeros territórios da vida virtual. Ambos a acenderem o fogo que
indica o lugar onde a vítima padece. A alguns o anonimato os encoraja.
Gritam suas denúncias como se estivessem protegidos por uma blindagem
moral. Como se também não cometessem erros. Como se estivessem em estado
de absoluta coerência. No conforto de suas histórias preservadas,
empunham as pedras para atacar os eleitos do momento.
O
fato é que o pecador público exerce o papel de vítima expiatória
social. Nele todas as iras são depositadas porque nele todas as misérias
são reconhecidas. No pecado do outro nós também queremos purgar o
pecado que está em nós. Em formatos diferentes, mas está. Crimes
menores, maiores; não sei. Mas crimes. Deslizes diários que nos recordam
que somos território da indigência. O pecador exposto na vitrine deixa
de ser organismo. Em sua dignidade negada ele se transforma em mecanismo
de purificação coletiva. É preciso cautela. Nossos gritos de indignação
nem sempre são sinceros. Podem estar a serviço de nossos medos. Ao
gritar a defesa ou a condenação podemos criar a doce e temporária
sensação de que o erro é uma realidade que não nos pertence. Assumimos o
direito de nos excluir da classe dos miseráveis, porque enquanto o
pecador permanecer exposto em sua miséria, nós nos sentiremos
protegidos.
Mas
essa proteção que não protege é a mãe da hipocrisia. Dela não podemos
esperar crescimento humano, tampouco o florescimento da misericórdia.
Uma coisa é certa. Quando a misericórdia deixa de fazer parte da vida
humana, tudo fica mais difícil. É a partir dela que podemos reencontrar o
caminho. O erro humano só pode ser superado quando aquele que erra
encontra um espaço misericordioso que o ajude a reorientar a conduta.
Nisso
somos todos iguais. Acusadores e defensores. Ou há alguém entre nós que
nunca tenha necessitado de ser olhado com misericórida?
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